Como a jurimetria pode alavancar a governança e a gestão das contingências


Em 2001, o mundo foi abalado pelo caso Enron, que era a sétima maior empresa dos Estados Unidos e uma das maiores empresas de energia do mundo na época.

A empresa pediu concordata nos Estados Unidos e até hoje o caso é considerado uma das falências mais importantes da história empresarial americana, depois da descoberta de uma série de escândalos contábeis e gerenciais utilizados para enganar os investidores e clientes sobre os reais resultados do negócio.

Muita coisa mudou a partir disto na gestão empresarial em escala mundial, afinal de contas, além do impacto econômico gerado pelo caso com repercussões, inclusive no Brasil, o caso literalmente quebrou a Arthur Andersen, então a quinta empresa internacional de contabilidade e auditoria do mundo, com 385 escritórios em 84 países e 85 mil funcionários.

Para se ter uma ideia, como resposta, já em 2002 o Congresso Americano aprovava a chamada Lei Sarbanes-Oxley (em inglês, Sarbanes-Oxley Act), a qual, em resumo, foi elaborada a partir de todo o aprendizado com as fraudes contábeis e gerenciais descobertas no caso Enron e estabeleceu um novo marco na gestão mundial.

Em resumo, a SOX, apelido dado a lei, estabeleceu alguns requisitos fundamentais para a governança mundial, dentre eles:

  • Cria o Public Company Accounting Oversight Board, órgão do governo para acompanhar as contas de grandes organizações americanas;
  • Define responsabilidades das empresas em relação as funções atribuídas aos seus Diretores e o nível de independência de comitês de auditorias e fiscalização;
  • Define requisitos para aprimoramento das divulgações financeiras das empresas, implementando padrões globais de divulgação de resultados dos negócios.
  • Define práticas de gestão baseadas na criação e manutenção de controles internos implementados para assegurar o cumprimento dos requisitos da lei.
  • Define responsabilidades, inclusive criminais, para administradores das empresas que falharem em demonstrar o cumprimento da legislação.
  • Determina que as práticas da lei sejam cumpridas, inclusive, por empresas controladas por empresas americanas sediadas fora dos EUA.

Assim, na primeira década deste século, o que se viu em âmbito corporativo no mundo foi um gigantesco movimento para adequação das corporações a esta legislação, também impulsionada pelo fomento das leis anticorrupção no mundo.

Mas, afinal, o que isto tem a ver com contingências jurídicas e, principalmente, com o papel dos dados na gestão da contingência legal? Absolutamente tudo!

 

Boas praticas da governança e gestão de contingências legais

 

Primeiro, dentre as diversas práticas ilegais praticadas pela empresa, e por muitas outras empresas no mundo, os administradores da empresa manipulavam as provisões para perda de contingências legais do negócio.

Como detalharemos mais a seguir, em resumo, uma provisão é uma espécie de reserva financeira feita por uma empresa que pode vir a ser obrigada no futuro a realizar algum pagamento a terceiro, por exigência legal, contratual ou comercial, por exemplo.

Ou seja, como hoje eu sei que, no futuro, eu devo realizar um pagamento para alguém, antes da minha empresa ter ou não lucro, eu preciso agora separar recursos para garantir que esses pagamentos sejam feitos quando forem devidos, lá na frente.

Essa obrigação empresarial de realizar provisões já existia mesmo antes da SOX, mas a parceria fraudulenta entre a administração e auditores externos levava o mercado a acreditar que esses pagamentos não seriam devidos aos terceiros, nem no futuro, o que por consequência desobrigava a empresa a realizar estas reservas como provisão, aumentando assim seus lucros e melhorando o seu desempenho anual. Sacou?

É como se você soubesse que terá despesas com impostos, material escolar dos filhos e questões médicas em alguns meses e, ao invés de guardar algum dinheiro que possa lhe sobrar agora, decida fazer uma viagem bacana com o dinheiro que tem na mão.

Isto parece pouco prudente, já que talvez você não tenha o mesmo dinheiro quando precisar pagar essas despesas no futuro, concorda? O mercado também.

Neste contexto, todas as discussões legais de uma empresa são abrangidas exatamente pelo mesmo contexto, já que se uma empresa poder vir a ser obrigada a pagar uma execução judicial ou uma multa, por exemplo, precisará ter recursos financeiros para isto quando for a hora do pagamento.

Vale lembrar que o Poder Judiciário possui meios como bloqueios de contas e ativos para assegurar o pagamento de obrigações legais das empresas, querendo esta ou não.

Assim, se uma empresa estiver enfrentando problemas financeiros e, em determinado momento, possuir em seu caixa recursos apenas para pagar fornecedores ou empregados e for obrigada a pagar um débito judicial, pode vir a encerrar suas atividades pela completa falta de capacidade financeira de operar o negócio.

Neste cenário, é fundamental que as empresas possuam boas práticas sobre os critérios utilizados para determinar se um pagamento será ou não devido no futuro, inclusive aqueles recorrentes de temas legais.

Voltando a Enron, a administração da empresa falhou, querendo ou não, em assegurar que suas estimativas sobre os pagamentos que a empresa deveria fazer por conta dos seus temas legais era suficiente e adequada para as discussões enfrentadas.

E, atualmente, estimar de forma suficientemente precisa o montante de assuntos legais que deve ser provisionado (separado) nas organizações para suas discussões legais continua a ser um grande desafio.

Para orientar os executivos, administradores, auditores e autoridades, existem práticas internacionalmente reconhecidas que determinam critérios para essa avalição.

No Brasil, o tema é tratado pelo COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS – CPC, órgão formado por diversas autoridades que emite normativas e orientações sobre diversos temas de interesse da gestão contábil e financeira de empresas.

No que tange as provisões para contingências de forma geral na empresa, incluindo aquelas relacionadas aos passivos judiciais, o órgão emitiu o PRONUNCIAMENTO TÉCNICO CPC 25 , que tem objetivo:

“estabelecer que sejam aplicados critérios de reconhecimento e bases de mensuração apropriados a provisões e a passivos e ativos contingentes e que seja divulgada informação suficiente nas notas explicativas para permitir que os usuários entendam a sua natureza, oportunidade e valor.”

Votando ao tema das reservas para pagamentos futuros de empresas e pessoas comentado acima, de forma muito resumida, podemos dizer que este normativo dá os parâmetros para que possamos estimar e determinar hoje se um pagamento será devido no futuro, e quais as condutas adequadas para empresas em cada caso.

Com relação aos pagamentos originados de contingências legais e obrigações exigíveis pelo Poder Judiciário, as empresas devem também observar estes parâmetros para sua tomada de decisão sobre as contingências e respectivas provisões.

E, neste sentido, a norma determina, resumidamente, que a empresa deve constituir uma provisão quando

(i) o valor de uma obrigação legal possa ser de forma suficientemente estimada,

(ii) a existência desta obrigação dependa de confirmação futura por terceiro que não a empresa e

(iii) seja provável que, se esta obrigação for confirmada, a empresa tenha que despender recursos financeiros para quitá-la.

Por exemplo, uma Reclamação Trabalhista, com pedidos no valor de R$50.000 apresentada contra uma empresa consiste em potencial obrigação legal desta vir a ser obrigada a realizar este pagamento no futuro.

Esta obrigação pode ser confirmada ou não no futuro conforme a defesa da empresa e, neste cenário, se for provável que a empresa precise realizar pagamentos para extinguir essa obrigação no futuro, deverá fazer esta provisão de R$50.000 hoje.

De fato, é um tema complexo, técnico e, ainda assim, dotado de uma enorme carga de subjetividade, já que falta saber como podemos determinar, afinal, se será ou não provável que a empresa tenha que despender recursos financeiros para quitar algo relacionado a uma obrigação legal discutida em um processo.

Dai que, resumidamente, nos habituamos no mundo jurídico empresarial a resumir esse sistema todo em algo como empresas provisionam hoje aquilo que seus advogados afirmam ser ou não provável ter que pagar em discussões judiciais no futuro.

Não é simples e o próprio CPC vem tentando facilitar as coisas para todos com versões mais simplificadas de suas normativas.

Nesta toada, passamos no mudo jurídico a segunda década deste século, já devidamente trabalhando segundo a agenda SOX, nos esmerando para demonstrar com argumentos técnicos e legais porque, com base em nossos serviços jurídicos, o êxito dos nossos clientes em juízo é possível.

Isto porquê, na prática, segundo a regra do jogo constante nas normais contábeis, uma obrigação cuja extinção não dependa de um provável pagamento para sua extinção, se caracterizando apenas como um possível pagamento e, assim, não demandando a realização das reservas denominadas provisões.

Voltando ao proveito prático que uma pessoa pode ter gastando hoje todo o dinheiro que possui, sem se preocupar com possíveis pagamentos futuros que tenha que fazer, este fator tem a mesma importância enorme para os resultados de muitas organizações.

Chegamos assim no ponto chave deste artigo: quais são as ferramentas que advogados possuem para sustentar que seus casos são de “perda possível” e não “perda provável”, ao longo dos anos?

 

Entenda as ferramentas dos advogados para sustentar as possibilidades de perda possível ou provável em casos.

 


A resposta para esta pergunta vale algumas dezenas de milhões de reais em alguns casos e são frutos de discussões profundas em entre assessores jurídicos internos e externos das organizações, auditores externos e internos, administração e acionistas.

Na prática, dificilmente um único advogado ou escritório é o responsável pela determinação da possibilidade de perda de casos, sendo hoje a melhor prática a formulação de Políticas de Provisionamento e Contingenciamento pelas empresas considerando a visão de todas as partes interessadas acima. Cabe lembrar que a área de Eficiência Jurídica da Finch facilita este processo para empresas utilizando as mais modernas ferramentas do mercado para esta tomada de decisão.

Antes destas ferramentas, basicamente, a opinião legal que suportava a decisão para decisão se uma obrigação legal tem perda possível, sem provisão, ou perda provável, com provisão, dependia:

(a) da avaliação da jurisprudência disponível sobre um caso,

(b) da avaliação da adequação do caso em concreto a esta jurisprudência examinada

(c) e da conformação pelo Poder Judiciário acerca do entendimento formulado pela empresa.

Esta é origem das métricas que a imensa maioria das empresas adotou na década passada, a qual pode ser resumida na prática de provisionar valores refletindo as condenações contra a empresa proferidas por órgãos de 2ª instância judicial.

Como numa esteira, nesta prática, um caso judicial novo é recebido pela empresa e classificado como de perda remota ou possível, já que a potencial obrigação legal está amparada apenas na alegação válida pelo autor do processo contra o negócio.

Com algumas variações, a maioria das empresas aguardava a primeira decisão do processo para refinar suas previsões de perda possível ou provável e então definir como lidar com sentenças desfavoráveis.

Como numa relação linear e óbvia, a maior parte das empresas defendia que, neste momento, se foi possível apresentar um recurso válido a um tribunal superior para combater a decisão de 1ª instância desfavorável, é porque seu êxito segue sendo possível naquele caso, inexistindo, portanto, perda provável que requer qualquer provisão.

Remetendo-nos ao slogan da marca de biscoitos em uma visão anedótica, defendíamos que nossos casos tinham êxito possível (e não perda provável) porque apresentamos recursos jurídicose e apresentamos recursos jurídicos justamente porque acreditamos que nossos casos tem êxito possível. Incrivelmente, foi bem por aí por anos.

Claro que estamos simplificando, mas, de forma geral, o que queremos dizer é que advogados e grandes bancas emprestavam sua responsabilidade funcional e profissional, bem como seu nome e reputação para validar as teses e pareceres jurídicos que embasam as chances de perdas em processos judiciais.

Não havia, de fato, dados disponíveis para qualquer tomada de decisão de forma diversa e, em realidade, tudo era bastante subjetivo, com elevadas possibilidades e sempre amparadas e dezenas de ressalvas as perspectivas e prognósticos realizados. Quem nunca ouviu que a palavra mais utilizada por advogados é “Depende”?

Em outra perspectiva, o chamado contencioso de volume, assim considerado as contingências que, individualmente, não são relevantes dado seu valor individual, mas que ganham importância na organização quando considerados em conjunto, por muito tempo estiveram abaixo do radar gerencial das empresas.

Casos e mais casos que são gerados por falhas de processos e questões que, de fato, podem ser consideradas como desvios operacionais típicos de negócios de setores como infraestrutura, telecomunicações, serviços financeiros ou energia, por exemplo, mas que ainda assim demanda análise minuciosa de dados disponíveis, seja para definição do prognóstico de perda dos processos ou mesmo para promoção de melhorias internas. Então, o que mudou? Sem dúvida, a chegada dos dados com fonte de informação.

Sabemos o quanto serviços jurídicos tem desafios que dificultam que a transformação digital na área seja feita com o mesmo vigor que observamos em outras áreas.

Contudo, somente na última década muitos departamentos jurídicos conseguiram aprimorar suas bases de dados para níveis mais satisfatórios de confiabilidade, permitindo a geração real de informação estratégica.

Com isso, foi possível aos gestores uma tarefa simples, mas até então pouco usual, consistente em avaliar o desempenho da empresa em assuntos e temas específicos discutidos no Poder Judiciário com partes as mais diversas.

De causas de Reclamações Trabalhistas a falhas de processos que geram ações de consumidores, surge aos poucos uma nova fronteira a ser explorada em relação aos dados disponíveis para tomada de decisão.

Entre essas frentes, damos destaque estudos na área de jurimetria nas organizações, tema que abordamos junto com diversos outros temas da gestão jurídica em um artigo recente, e que pode ser definida com a “disciplina resultante da aplicação de modelos estatísticos na compreensão dos processos e fatos jurídicos”.

Não iremos nos alongar no tema neste artigo, mas sim fazer a conexão entre a realidade vivida na governança jurídica no começo deste século, inclusive a gestão de provisões para obrigações legais, e todas as novas oportunidades e requisitos que agora surgem dentre deste novo contexto.

Em contraste a estas 2 décadas passadas e esta que agora iniciamos, as mesmas discussões profundas em entre assessores jurídicos internos e externos das organizações, auditores externos e internos, administração e acionistas para tomada de decisão sobre provisões precisam agora ser suportadas por números e dados objetivos disponíveis.

Como disse certa vez William Edwards Deming, estatístico, professor universitário e consultor empresarial, amplamente reconhecido pela melhoria dos processos produtivos nos Estados Unidos: In God we trust; all others must bring data (Confiamos em Deus, todos os demais precisam trazer dados).

Agora, em contraposição a clássica linha do tempo processual na qual aguardávamos um caso ser julgado em 2ª instâncias para, se os advogados concordassem, passarmos a entender que uma saída de recursos financeiros será provável para extinção da obrigação legal, tão logo uma empresa recebe uma nova demanda judicial é possível apresentarmos prognósticos objetivos de valores que a empresa deverá ou não desembolsar no futuro para extinção desta obrigação. Isso mudou o jogo.

Não somente porque podemos afirmar que determinados montantes de recursos poderão serem exigidos da empresa para extinção de um caso recém recebido, fazendo-o a partir dos dados disponíveis em todo poder judiciário sobre aquele tema, mas, principalmente, porque podemos determinar quais elementos apresentados nas defesas das empresas são ou não relevantes para aumentar suas chances de sucesso.

Com isso, ao mesmo tempo, revolucionamos as medidas estratégicas das empresas para reduzir os custos legais e impactos em seus resultados com provisões jurídicas e pagamentos para extinção de obrigações legais, como determinamos quais processos tem maior ou menos perspectiva de êxito judicial, inclusive para determinar quais deles sequer deveriam ser objeto de defesas e recursos por parte da empresa.

Sob o prisma da governança, agora as empresas estão utilizando dados para criar algoritmos e fórmulas com inteligência de negócio para determinar quais casos demandam provisionamento de valores e qual medida de valores.

Em alguns projetos, muitos dos quais temos a felicidade de participar, já vemos o uso de Inteligência Artificial e leitura de documentos por meio de robôs para análise das alegações das partes e geração de informação estratégica e crítica.

Vale dizer, excelentes gestores e executivos jurídicos já possuíam essa visão e agenda orientada por dados ao longo das últimas décadas, mas o estágio da maturidade da gestão dos dados, a tecnologia e o nível de conhecimento das equipes simplesmente limitavam a confiabilidade, abrangência e tempestividade dos dados gerados.

Mais ainda, não estamos reduzindo a importância da avaliação legal e jurídica acerca de temas, casos e cenários para tomada de decisão e, pela perspectiva de governança, estimar a probabilidade de saídas de recursos financeiros para quitação de obrigações jurídicas, ao contrário, estamos agora disponibilizando cada vez mais formas e meios para que estas avaliações sejam cada vez mais precisas.

Com isso, podemos realizar perguntas cada vez mais complexas e, considerando que uma das definições de incerteza é a “qualidade daquilo que incita dúvida(s)”, utilizarmos a falta de certeza que tradicionalmente enfrentamos em âmbito jurídico como combustível para aprimorarmos nossa governança e capacidade estratégica.

Esperamos que quando o leitor, em qualquer estágio de carreira e atuando ou não na área legal, tenha compreendido a relevância do contexto e evolução histórica das contingências jurídicas e obrigações legais como um dos principais atributos a serem trabalhados nesta nova da governança e gestão jurídica orientada por dados.
 

Sobre o autor


Daniel I. P do Amaral Mello é advogado, especializado em Operações Legais, Inovação Jurídica e Governança Corporativa, MBA em Economia e Gestão Empresarial na FIA-USP, Head de Soluções em Operações Legais da Finch.